Eu o vejo quase todos os finais de semana, esmolando perto do prédio da prefeitura, recostado à grade do Viaduto do Chá. Roupas surradas, chega com o auxílio de muletas e ali fica, a velha bacia branca estendida para os passantes. No mesmo dia em que falei com José Molina e Albino (divulgadores da Cultura Racional, próximos entrevistados a serem publicados) tive minha primeira conversa com Francisco. Aproveitei a ocasião e fotografei-o.Uma semana depois, reencontrei-o no lugar de sempre e entreguei uma cópia em cores de um de seus retratos. Francisco agradeceu e mostrou-se feliz ao ver o próprio rosto transposto em papel.Conversamos bastante, e mais uma vez ele se mostrou mais à vontade no papel de entrevistador do que no de entrevistado.
V&I: Olá, Francisco. Tudo bom?
Francisco: Eu tou de bengala.
V&I: Por que você usa bengala?
Francisco: Eu tou com deficiência. Chama-se... [Afasta-se do gravador e aborda um homem, que o ignora.] Irmão, dá uma entrevista? [Volta ao gravador.] Eu tou com deficiência.
V&I: É artrose o que você tem?
Francisco: Artrose.
V&I: É no joelho?
Francisco: É no joelho.
V&I: É porque você andava muito de bicicleta, não é?
Francisco: De bicicleta.
V&I: E o que você fazia de bicicleta?
Francisco: Eu trabalhei... [esquece o gravador, aborda alguém que passa, volta a falar] ...na Associação Comercial de São Paulo.
V&I: E o que você fazia lá?
[Francisco se desloca na direção de outro homem e pede uma entrevista. Mais uma vez é ignorado.]
Francisco: Ele não quer falar...
V&I: Você quer continuar?
Francisco: Vamos. Eu trabalhei trinta e cinco anos na rua Boavista. [Aborda outros transeuntes, sempre sem sucesso. “Ô, irmão, me dá uma entrevista? Ô, irmã, me dá uma entrevista?”] Eu trabalhei trinta e cinco anos...
V&I: O q você fazia lá? O que você entregava de bicicleta? Jornal?
Francisco: É. O Diário do Comércio. [Uma mulher dá uma moeda.] Olha só. Já ganhei cinqüenta centavos!
V&I: Onde você nasceu, Francisco?
Francisco: Eu sou paulista, rapaz!
V&I: Você tinha dito que é alagoano. Onde você nasceu, Francisco?
[Francisco aborda as pessoas, sempre pedindo uma entrevista. Parou junto a um grupo, apontou para mim e disse que eu era da Globo.]
V&I: Ei, Francisco. Você que é o entrevistado! É você quem tem que dar a entrevista pra mim.
Francisco: É... Eu trabalhei trinta e cinco anos.
V&I: Você é de Alagoas, não é?
Francisco: Alagoano.
V&I: De que lugar?
Francisco: São Miguel dos Campos.
V&I: Quando você veio pra São Paulo?
Francisco: Dois mil e sete.
V&I: Não, não... Em que ano que você veio pra cá? Há quantos anos você está em São Paulo?
Francisco: Trinta e cinco anos. Mas você chegou com minha foto!
V&I: É claro. Eu falei que vinha com sua foto. Você gostou?
Francisco: Menino...
V&I: Você gostou, não é? Ficou bonito.
Francisco: Ave Maria! [Rindo muito. Novamente foi atrás das pessoas que passavam.]
V&I: É você quem tem que dar a entrevista.
Francisco: Eu, não é?
V&I: É. Francisco, você casou?
Francisco: Eu fui casado, sou viúvo.
V&I: Quantos filhos você tem?
Francisco: Isso é um gato? [Aponta para uma moça, que passa com um cachorrinho nos braços.]
V&I: Acho que era um cachorro.
[Francisco ri. Continua a abordar quem passa..]
V&I: Ah! Francisco, você não quer dar entrevista.
Francisco: Eu quero.
V&I: Então, fala! Quantos filhos você tem?
Francisco: O Sérgio, o Luis e a Raquel.
V&I: Estão todos em São Paulo?
Francisco: Todos paulistas.
V&I: Eles casaram? Você tem netos?
Francisco: Casaram... Tenho netos... [Aproxima-se das pessoas e propõe entrevistas. Ninguém se anima com a idéia.] Mas ninguém gosta!
V&I: Ninguém gosta porque você é muito rápido. Tem que chegar devagarzinho, tem que conversar...
Francisco: Ô, Osvaldo...
V&I: Eu não sou Osvaldo, sou Ricardo. Você tem quantos netos?
E mais uma vez Francisco me ignorou. Desisti da entrevista e desliguei o gravador. Voltei a fotografar quem passava, aproveitando a ótima luz daquela tarde. Longe do gravador, acabei ouvindo mais de Francisco: que era viúvo há três anos, que a esposa morreu de diabetes, que recebia uma aposentadoria de trezentos reais. Soube também que todos os dias saía de sua casinha no Jardim Camargo Velho e pegava um ônibus para ir esmolar ali no Centro – vinte e sete quilômetros em linha reta.
Sem que eu perguntasse, sugeriu que eu fizesse um livro de fotos com o nome “Vida Cotidiana”. Foi abordado por dois pregadores, igrejas Pentecostal e Deus é Amor, respectivamente.
Recostado à grade do Viaduto do Chá, Francisco continuou a pedir entrevistas em suas abordagens aos passantes. Depois, com a mesma falta de sucesso, passou a pedir sorrisos – “Ei, me dá um sorriso?” Eu não estava tão longe quando Francisco finalmente arrancou o sorriso de um gari, ao exclamar, alto e bom som: “Eu tou de pinto duro!” O gari: “Êpa!” E Francisco emendou: “É assim que tem que ficar.”
Francisco ainda voltaria a falar sobre sexo. Uma mulher de uns quarenta anos com ele dividiu um milho verde. Francisco agradeceu o milho e logo avisou a ela que nada esperasse dele - “estou há nove anos sem sexo.” Ela reclamou sem convicção de que as pessoas só pensam em sexo, que as pessoas confundem gentileza com sacanagem. Posou para uma foto que tirei, ela ao lado de Francisco. Apenas soube a profissão dela quando ao se despedir recitou o endereço da boate onde trabalhava: "pode aparecer", escutei dela. Não apareci na tal boate. Devo estar perdendo uma ótima entrevista...